Livro das Meditações
- César Nardelli Cambraia - Universidade Federal de Minas Gerais
O Livro das Meditações é a tradução medieval portuguesa de uma coletânea composta por textos de origem diversa.
Na Patrologia Latina de Migne (t. 50, coll. 901-942), a obra aparece nomeada como Liber Meditationum e dela fazem parte textos pertencentes principalmente a Anselmo de Cantuária (ca. 1033-1109), ao Liber de Speculo, a Alcuíno de York (735-804) e a Agostinho (354-430), mas também a João de Fécamp (1028-1078), a Gregório Magno (ca. 540-604) e a Pedro Damião (ca. 1007-ca. 1072).
A tradução medieval portuguesa foi preservada em apenas um testemunho: cód. alc. 212, Biblioteca Nacional, Lisboa, séc. XV, ff. 252r-282v. Esse testemunho apresenta mutilação no início e no final, atingindo, neste último caso, o texto do Livro das Meditações, que terá perdido seu capítulo final, tomando-se como referência o texto da versão latina presente na Patrologia. O texto do Livro das Meditações do cód. alc. 212 apresenta erros típicos de processo de cópia, não constituindo, portanto, o seu registro original. As camadas linguísticas do texto sugerem que a tradução foi feita no séc. XIV, com cópia no primeiro quarto do séc. XV e nova cópia possivelmente entre 1435 e 1468 (sendo esta última cópia a do cód. alc. 221).
No cód. alc. 212, não é atribuída autoria à obra, sendo ela identificada apenas por “varias oraçoens devotas” na tradicional página de rosto acrescentada aos códices alcobacenses no séc. XVIII. Na Idade Média, a obra terá circulado como sendo de autoria de Santo Agostinho, fato que se justifica por realmente conter alguns textos desse autor: há trechos da obra Confissões (livs. 1, 7, 10, 12 e 13) e Solilóquios (liv. 1). Há quatro registros de obra com título semelhante a Liber Meditationum em coleções medievais portuguesas: (a) no catálogo de livros de D. Duarte, escrito entre 1433 e 1438, constam “Hum Livro das Meditações de S. Agostinho, que trasladou o moço da Camera” e “Livro das Meditações de S. Agostinho, e das Confissões”; (b) no testamento do D. Fernando, o Infante Santo, de 1437, há “O solliloquio de santo agustinho e de suas meditações em lingagẽ”; e (c) na lista de livros da livraria real de D. Manuel, de 1522, consta “Outro livro das Myditaçõees e sobloqueo de santo Agostinho”. Pelo catálogo de D. Duarte comprova-se que terão existido simultaneamente, pelo menos, duas cópias do Livro das Meditações.
Do ponto de vista de conteúdo, a coletânea não apresenta propriamente uma unidade temática e a ausência de título de capítulos na tradução portuguesa impede verificar quais foram os temas da obra tidos como mais importantes naquela época. O principal fator agregador dos textos parece ser simplesmente o fato de consistirem em orações tendo principalmente Deus como destinatário, razão pela qual são bastante frequentes os vocativos que lhe fazem referência.
CAMBRAIA, C. N.; MORDENTE, L. S. Livro das Meditações (cód. alc. CCLXXIV/212): edição. Laborhistórico, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 12-85, 2017.
GOMES, S. A. ‘O fogo do teu amor’: orações e meditações de um monge alcobacense. Lusitania Sacra, Lisboa, 2ª série, n. 22, p. 245-268, 2010.
MORDENTE, L. S. Meditações de Pseudo-Agostinho (cód. alc. 212): edição semidiplomática. 2003. 90 f. Monografia (Graduação em Letras: Língua Portuguesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.
Ó Senhor Deus meu, faz com que meu coração Te deseje; e, desejando-Te, busque; e, buscando, Te ache; e, achando, Te ame; e, amando-Te, os meus males sejam perdoados e aos perdoados não tornem. Dá, Senhor, contrição de espírito ao meu coração, e fonte de lágrimas nos meus olhos, e lágrimas de esmola às minhas mãos. Ó meu Rei, apaga em mim os desejos da carne e acende em mim o fogo do Teu amor. Ó Redentor meu, expulse de mim o espírito da soberba. Ó Misericordioso, outorga-me o tesouro da Tua humildade. Ó Salvador meu, tira de mim a sanha da ira. Ó Benigno, outorga-me mansidão da paciência. Criador meu, arranca de mim o rancor do coração e dá-me doçura da vontade. E a mim, piedoso Pai, dá-me firme fé e esperança conveniente e caridade contínua. Criador meu, afasta de mim a vaidade da vontade, a fraqueza do coração, o discurso sem proveito ao entendimento, o muito falar da boca, o levantamento dos olhos, o enchimento do estômago, o insulto dos próximos, os pecados das murmurações, o prurido e o grande desejo das coisas sem proveito, a cobiça das riquezas, o esbulho por poderios, o apetite da vanglória, o pecado da hipocrisia, o verme das louvaminhas, o desprezo dos minguados, o subjugamento dos fracos, o ardor da avareza, a ferrugem da inveja e a morte da blasfêmia.
Autor da obra: Diversos [Anselmo de Cantuária, no trecho acima]
Título da obra: Livro das Meditações [Oração 10, no trecho acima]
Data da tradução: Possivelmente séc. XIV.
Imagem: Cód. alc. 212, Biblioteca Nacional, Lisboa, séc. XV, f. 282r (Disponível em: http://purl.pt/24119)