Sob a epígrafe O bispo de Jaén sobre a seita mahometana, o manuscrito do Escorial h-II-25 (s. XVI) transmite um extenso tratado, escrito em língua castelhana, de controvérsia contra o Islã e apologia da religião cristã.
A obra apresenta uma divisão em dezesseis seções ou títulos, dos quais o primeiro e mais extenso trata sobre questões islamológicas, os doze seguintes expõem e comentam os principais episódios da vida de Cristo, e os três últimos incidem em questões-chave da apologética cristã contra judeus e muçulmanos, como são o culto às imagens e a defesa da trindade e da condição divina de Jesus Cristo. O conjunto é precedido por um prefácio e um prólogo. Após o último título, e sem nenhuma epígrafe que o introduza, encontrase um opúsculo que denuncia o fatalismo muçulmano e defende o livre arbítrio, a justiça, a bondade e a graça divina.
O primeiro dos títulos é dividido em oito capítulos de extensão desigual, dedicados respectivamente às seguintes questões: 1) promoção religiosa e política de Maomé, segundo as fontes muçulmanas, 2) esposas de Maomé, 3) contradições no Alcorão, 4) contradições nos livros da tradição muçulmana, 5) mentiras e vaidades contidas no Corão, 6) morte de Maomé segundo a tradição muçulmana; 7) conquista da Hispânia pelos mouros; 8) biografia e morte de Maomé, de acordo com os livros dos cristãos. Para os sete primeiros capítulos as fontes principais são o próprio Corão, a Sīra de Ibn Hišām, relatos diversos (aḥādīṯ) da tradição muçulmana e crônicas hispano-árabes da conquista de Hispânia. Esta notável erudição islamológica pode ter sido adquirida oralmente, por meio de intérpretes muçulmanos, judeus ou cristãos, mas também, em grande parte, através de obras cristãs de controvérsia contra o Islã, quiçá assimiladas no curso de uma formação escolar em escolas de pregadores.
Por sua parte, o relato da vida e dos preceitos de Maomé segundo a tradição cristã procede, segundo precisa o autor, de um livro escrito em latim que lhe foi confiado e que ele se limitou a traduzir. De fato, o conteúdo desta biografia legendária é praticamente idêntico ao que oferece a anônima Vita Machometi (finais do séc. XIII) do manuscrito 50 da Biblioteca do Seminário de Pisa, ff. 81va-85rb, procedente da biblioteca do convento dominicano de Santa Catarina, em Pisa. Contudo, dentro desta mesma seção encontra-se um relato da viagem celeste do Profeta (al-miʿrāŷ), que foi certamente tirado do perdido Liber Halmahereig, redatado em castelhano por Abraham de Toledo e posteriormente traduzido para o latim por Buenaventura de Siena sob o título Liber scale Machometi.
Os títulos II-XVI têm uma orientação mais catequista de que controversa. O método expositivo é semelhante em todas as seções: em primeiro lugar, o redator resume o conteúdo dos principais episódios da vida de Jesus Cristo e os atos dos apóstolos reunindo uma série de citações dos evangelhos; em segundo lugar confirma a veracidade destes relatos mediante a exegese de passagens do Antigo Testamento, especialmente dos livros proféticos e dos Salmos; em terceiro lugar, introduz comentários e desenvolvimentos doutrinários baseados tanto nas epístolas de Paulo como na autoridade dos Padres da Igreja; ocasionalmente, adiciona digressões de conteúdo hagriográfico, milagres ou histórias de martírio. Entre as muitas obras doutrinárias cristãs que o autor pôde conhecer e usar, há uma que, com certeza, manejou primeiro: É a Legenda Áurea do dominicano Jacopo da Varazze († 1298), de onde procede boa parte do conteúdo exposto nos títulos X (sobre a ressurreição de Jesus Cristo); XI (como Cristo tirou os padres do inferno); XII (da ascensão) e XIII (do cinquesma), além de muitos outros episódios hagiográficos e argumentos apologéticos.
Quanto ao opúsculo sobre o fatalismo muçulmano que se apresenta seguidamente ao título XVI, o redator afirma tê-lo composto em consequência de uma disputa mantida com alguns mouro tempos depois de haver concluído o tratado, porém esta declaração é contraditória ao fato de que sua inclusão aparece anunciada várias vezes no título I. A aparente incoerência convida a considerar que o conjunto do tratado mais o apêndice constituem uma unidade conceitual de fato, mas ao mesmo tempo, esse conjunto unitário poderia ser o produto de uma recensão posterior a primeira versão (ou rascunho) do
tratado.
Ao longo do texto, o modus operandi do redator baseia-se mais na compilação e paráfrase de textos do que na elaboração doutrinária original. Em todo caso, parece claro que ele não citava de memória a grande qantidade de passagens bíblicas e autoridades patrísticas que aduz, em vez disso trabalha a partir de materiais livrescos que tinha à vista. Esta conclusão é, desde logo, contraditória com as declarações que faz em diversos pontos sobre as lacunas de sua memória e sobre a carência de livros dada sua condição de cativo.
A identidade do autor e a data da composição são duas questões controversas e ainda pendentes de uma solução definitiva. No prólogo o redator declara ser Dom Pedro, bispo de Jaén, e que se encontra cativo dos muçulmanos em Granada. Em outras passagens afirma que o ano em curso é o de 1300. Dado que está comprovado que entre 1296 e 1300 a cadeira episcopal de Jaén foi ocupada por um bispo chamado Pedro e que este morreu em cativeiro em Granada nos finais de 1300, parece, de início, legítimo atribuir-lhe a autoria do tratado que nos ocupa. Contudo, desde inícios do século XVII tanto a tradição local de Jaén e de Granada como, sobretudo, a historiografia da ordem mercedária, identificaram o bispo Don Pedro com Pedro Nicolás Pascual, um frade mercedário natural de Valência, que teria vivido entre 1225 e 1300, sempre consagrado às necessidades próprias de sua ordem: a predicação, a redenção de cativos e a fundação de conventos mercedários em distintas cidades do reino de Castela. Além do tratado antimuçulmano, Pedro Pascual atribuiu-lhe a autoria de outros escritos doutrinários em castelhano e valenciano, que conservamos em vários manuscritos e incunábulos.
No desenvolvimento do processo de beatificação de Pedro Pascual, realizado entre 1645 e 1675, enquanto os principais pontos de sua suposta biografia foram fixados com pouco rigor, as obras que lhe foram atribuídas foram editadas pela primeira vez, mas não em suas versões originais, em espanhol ou valenciano, mas em uma tradução para o latim promovida por iniciativa do Cardeal Pedro de Salazar. A primeira edição dessas obras em seus idiomas originais, embora ainda acompanhada pela tradução latina de Salazar, foi publicada em 1908 em Roma, pelo mercedário Pedro Armengol Valenzuela.
Desde o final do século XIX, após a publicação de um conjunto de documentos do Papa Bonifácio VIII referente ao bispo de Jaén Dom Pedro, até então praticamente desconhecidos, foram submetidas a críticas boa parte das informações consignadas em sua biografia canônica e inclusive foi desmentida a existencia histórica de Pedro Pascual, mercedário valenciano. Ao mesmo tempo, os estudos filológicos de algumas das obras atribuídas a ele convidaram a questionar a tese tradicional sobre sua autoria e sua datação em finais do século XIII. Não obstante, nenhuma dessas reservas afetou a consideração
do tratado Sobre la seta mahometana, que sempre foi considerado como uma obra genuína, se não do frade mercedário Pedro Pascual, ao menos do bispo Dom Pedro. Somente o autor da edição mais recente do tratado arrisca uma hipótese alternativa: que a obra tenha sido composta na segunda metade do século XIV, não antes de 1352 (pelo sincronismo proposto no texto entre a data de redação e os cem anos transcorridos desde o martírio de Pedro de Verona), nem depois de 1392 (data da cópia do manuscrito El Escorial h-III-3, que transmite outro escrito atribuído ao bispo Pedro de Jaén).
Quanto à autoria, o exame de alguns dos materiais utilizados como fonte sugere um ambiente de composição fortemente influenciado pela literatura predicativa dominicana. Assim se explicaria o uso extensivo da Legenda Aurea, a familiaridade com a obra anti-muçulmana de Ramón Martí e o manejo da biografia de Maomé do códice de Pisan, proveniente precisamente de um convento dominicano. Por outro lado, a relativa coerência entre o que sabemos sobre o histórico Dom Pedro e as confidências que o redator faz sobre si mesmo, fazem suspeitar que o tratado tivesse sido composto em um meio onde se conservasse viva a memória do bispo cativo e em un tempo não muito posterior a seu falecimento. Uma hipótese tentadora seria localizar sua redação na própria diocese de Jaén durante o episcopado de Nicolás de Biedma (1368-1378 e 1381-1383), sob cujo mandato foi fundado, em 1382, o convento dominicano de Santa Catarina de Jaén.