Um número expressivo de volumes circulou no século XV com o título
Ars moriendi ou
Arte de morrer, em duas versões, claramente inspiradas pela terceira parte do
Opus tripartitum do teólogo parisiense Jean Gerson (1363-1429), sobre a “ciência de bem morrer”, escrito concebido para uso dos sacerdotes no amparo espiritual aos morrentes. A versão longa, manuscrita e comumente intitulada
Tractatus ou Speculum artis bene moriendi, foi provavelmente escrita por um dominicano entre 1414 e 1418, durante o Concilio de Constança; compõe-se de seis partes, que incluem a introdução, as tentações diabólicas que o agonizante deve superar, uma sequência de questões que este deve responder, considerações sobre a conduta dos que o acompanham, bem como orações. A versão curta, por sua vez, propriamente nomeada
Ars moriendi, igualmente anônima, reelabora o segundo capítulo da primeira variante, transformando-o em uma disputa entre o diabo, que tenta o cristão em seu leito de morte, e o anjo, que o inspira a resistir com firmeza às provocações do inimigo. Nesta versão, o núcleo composto pelas cinco tentações combatidas por cinco inspirações acompanha-se de uma breve introdução e de uma conclusão. Este formato breve é o que se disseminou nas variadas traduções vernáculas, em formato xilográfico e tipográfico, acrescido de imagens para cada capítulo e destinado, portanto, a um público mais amplo de fiéis laicos e de clérigos menos instruídos.
A difusão de ambas as versões da arte de morrer não ignorou a Península Ibérica. Dos numerosos exemplares conservados por toda a Europa – 234 manuscritos, 77 impressos e 21 xilográficos –, existem da versão longa quatro manuscritos em castelhano, dois em catalão e uma edição tipográfica em castelhano, ao passo que da versão curta constam três edições tipográficas, duas em catalão e apenas uma em castelhano. Este único incunábulo em castelhano da versão reduzida da arte de morrer, com o título
Arte de bien morir y Breve confessionário, é o da edição impressa em Saragoça por Pablo Hurus entre 1479 e 1484. O exemplar encontra-se atualmente na biblioteca do Monastério de San Lorenzo de El Escorial, fundado por Filipe II no século XVI. No pequeno volume de 36 fólios, a tradução de um dos escritos didáticos de maior difusão entre os primeiros impressos acompanha-se, além do
Breve Confessionário, das
Coplas de Mingo Revulgo con las glosas de Hernando del Pulgar, seguida das cartas desse mesmo autor e do
Chatón traducido por Martín García.
O incunábulo do monastério de El Escorial traduz fielmente o texto latino que lhe serve de base e, como as outras versões latinas e vernáculas, traz a sequência de onze figuras que ilustram em detalhe cada uma das tentações e inspirações tratadas nos capítulos, além da imagem final da boa morte. As ilustrações usadas por Hurus nesta edição apresentam traços mais grosseiros e singelos do que as de edições francesas e alemãs conhecidas, como a impressa por Antoine Vérard, em Paris, ou até mesmo a xilográfica editada por Konrad Kachelofen, em Leipzig, em 1496. Por isso, parece que o editor ibérico teve como matriz as imagens de algumas versões xilográficas alemãs mais simples – que também não trazem as faixas com inscrições explicativas próprias de edições mais difundidas –, o que não era incomum, já que alemães e flamencos foram os primeiros impressores a se instalarem na Espanha. Com o apoio de tais imagens, o opúsculo apresenta primeiramente ao leitor as considerações sobre a importância de se preparar para a morte; em seguida, são esmiuçadas a tentação contra a fé, a tentação da desesperança, da impaciência, da vanglória e da avareza, contrapostas pelas inspirações angelicais correspondentes, que ensinam o cristão, respetivamente, a manter firme a sua crença e esperança na misericórdia divina, a curvar-se resignadamente à vontade do Criador, a resistir com paciência ao sofrimento corporal, a desapegar-se dos bens materiais e dos entes queridos. A boa morte realiza-se, por fim, com a superação das tentações por meio da perseverança em todas as condutas, reflexões e virtudes inspiradas pelo anjo, tendo a fé, a caridade, a paciência e a humildade como condutoras.
Composto inicialmente para acorrer ao desamparo espiritual que se impôs nos séculos XIV e XV com as ondas de peste, as tensões políticas e as lacunas da ação pastoral no ocidente cristão, palco de contendas dramáticas como o Grande Cisma da Igreja, o texto da arte de bem morrer também teve um lugar junto a demandas específicas dos fiéis ibéricos de finais do quatrocentos. As edições hispânicas desse escrito pertencem a um vasto conjunto de textos que contribuiu para a ampliação da escrita vernácula nos reinos peninsulares, expansão que se dava não apenas no âmbito das Cortes régias – com caráter administrativo e jurídico – e da instrução dos reis, mas também no que diz respeito ao próspero incentivo às traduções que enriqueciam as cada vez mais numerosas bibliotecas de nobres e burgueses. Não obstante o incremento das traduções de textos clássicos sob encomenda de laicos ascendentes que viam nos livros sinais de prestígio e passavam a investir na própria erudição, os escritos religiosos eram os mais comuns. Selecionados pelas autoridades eclesiásticas, textos desta natureza apresentavam-se como instrumentos imprescindíveis a uma Igreja temerosa dos movimentos reformistas e ansiosa por fortalecer a sua ação, sistematizando o controle sobre os fiéis por meio dos registros paroquiais de batismos, casamentos e mortes, e recordando, com a ajuda dos livros, as obrigações de cada um. A tradução castelhana da arte de morrer indica, também, a introdução, nesse contexto ibérico, de ensinamentos voltados para práticas de devoção mais introspectivas e privadas, baseadas na leitura pessoal e no exame de si, e que já vinham sendo difundidos em outras línguas vernáculas, como nos escritos franceses de Jean Gerson para os laicos, no início do século, tendo a meditação sobre a morte como um dos temas centrais.
Referências BibliográficasALVAR, Carlos. Promotores y destinatarios de traducciones en Castilla durante el siglo XV.
Cahiers de linguistique et de civilisation hispaniques médiévales, n. 27, p. 127-140, 2004. Disponível em:
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