Breve e muito proveitoso tratado contra o murmurar e falar mal do outro em sua ausência
Hernando de Talavera (1428-1507)
Talavera sofreu na própria pele as consequências das difamações que nas últimas décadas do século XV fizeram recrescer o antijudaísmo. Não é de surpreender que, ao longo de sua vida, ele tenha se movido em mundos onde a murmuração e a maledicência eran moeda corrente, da universidade ao convento, passando pela corte real e pelos círculos da alta hierarquia eclesiástica. Atribui ao pecado da inveja o que desde o início do tratado qualifica como vício universal, a murmuração, difícilmente restituível pois como pode a fama de uma pessoa ser restituída diante de seus semelhantes? Pregunta-se o autor. Plenamente consciente da transcendência da fama na sociedade medieval, um capital simbólico do qual os indivíduos desfrutavam por seu comportamento mas que, em última instância, derivava da opinião dos demais (Madero, pp. 21-25), ele não hesita em qualificar o ator da murmuração como praticante de pecado mortal. A conversa pública criava a fama das pessoas, um conceito que os canonistas medievais aceitavam como evidência nas práticas judiciais (Pérez Martín, pp. 117-125). Apenas a ausência de má intenção, desde que demonstrada, poderia tornar este pecado venial.
O pecado da murmuração e da maledicência não só prejudica o perpetrador e a vítima, mas também corrompe quem o ouve, e transmite por sua vez, a outras pessoas. Língua e ouvidos, lembra Talavera, tornam-se instrumentos que o diabo usa. A Bíblia é uma fonte constante de imagens para visualizar esses argumentos. Satanás é a serpente que simboliza a primeira murmuração ao dizer a Eva que Deus os proibiu de comer o fruto da árvore para que não pudessem alcançar a sabedoria do criador. (Ladero Quesada, pp. 421-422).
Sempre atento em seus tratados à definição dos conceitos, Talavera distingue três formas de murmurar: ocultando o bem do outro quando seria benéfico para a sua própria fama, subestimando ou deturpando tal bem quando é comentado por outra pessoa e revelando os defeitos do próximo na presença de quem não os conhecia. O autor está extremamente preocupado com a audiência dos murmúrios e como se pode-evitar que o mal feito pela difamação se estenda. Por isso, delimita cuidadosamente quando a atitude do receptor de uma murmuração se torna inaceitável: deixar o murmurador falar livremente, sem interrompê-lo, por medo ou vergonha; mostrar agrado com palavras ou gestos ante as palavras do murmurador, abençoando assim sua má fala e atrevimento; pecando ao ouvir o murmurador e correspondendo aos seus dizeres murmurando o mesmo, quer diretamente, quer fazendo-lhe perguntas indiscretas e incitadoras. Este modo de induzir é especialmente perigoso e convém não perguntar aos invejosos sobre o que é mau ou bom. Como regra geral, aconselha evitar ser muito curioso fazendo perguntas sobre o que não é necessário saber (Ladero Quesada, pp. 423-424).
Contudo, se surgirem circunstâncias em que é impossível não ouvir o murmurador, o ouvinte pode tentar tomar algumas precauções que são descritas em detalhes para amenizar o pecado a que é arrastado: repreender o murmurador; afastar-se do lugar onde estão murmurando; expressar gestos de desaprovação para que quem murmura desista de sua empreitada (alguns muito curiosos são detalhados, como coçar a cabeça ou a barba, cortar as unhas, rasgar o manto, suspirar ou olhar para o outro lado, etc.); não acreditar sem reflexão crítica na veracidade do que está sendo dito; relembrar o que foi dito sobre nós sem que tivesse veracidade; se acreditarmos que o que o
murmurador difunde é verdade, examinemos nossos pecados e nos arrependamos para que a língua do murmurador faça menos dano à nossa alma; por fim, convém ter compadecimento daqueles sobre cujos supostos males se murmura e orar para que eles sejam perdoados, de modo que saber de seus defeitos seja menos repreensível para nós.
Embora o arrependimento seja a forma desejável para restaurar a fama do caluniado, tanto para o murmurador quanto para aquele que dá credibilidade à sua fofoca, tal avidez pode ferir a dignidade do caluniador e colocar em risco sua segurança, causando maiores danos. Assim, inspirando-se na Bíblia, Talavera propõe reparações indiretas, como difundir a retificação da mentira sem descobrir o caluniador; e caso forem verdadeiras, a indiscrição deve ser compensada com a divulgação de palavras que servem para restaurar a fama. Porém, se a pessoa difamada sabe quem foi o autor da murmuração, ela só pode pedir perdão e oferecer-lhe uma reparação. Caso não conheça o difamador, é aconselhável pedir perdão por meio de um intermediário, de preferência uma pessoa de boa fé. O zelo de Talavera em evitar a propagação de boatos e de sua autoria é tal que ele contempla todos os cenários possíveis para que o maior patrimônio social e moral dos homens e mulheres medievais, a fama, seja restaurada. Ao mesmo tempo, a orientação eminentemente pedagógica e pastoral do Arcebispo de Granada com dito zelo não cessa de contrastar com o direito canónico, numa sociedade em que o crime de injúria era frequente e altamente perseguido. (Guijarro González, pp. 792-794). Os canonistas medievais insistiam que o crime ou a falta cometida por uma pessoa deveria ser conhecida por toda a comunidade para que o acusado fosse irrogado por infâmia (Mansferrer, pp. 96-101). A declaração de infame separava o acusado da comunidade e evitava o que se considerava o maior dos males, o escândalo.